Hoje começa sei lá que edição da versão brasileira do reality show mais popular do mundo. O Big Brother Brasil já se tornou uma tradição do mês de janeiro na TV aberta e esse ano vai ser interessante observar como será o desempenho da atração em tempos de queda franca na audiência da televisão, que tem sido substituída por outras mídias principalmente pelos jovens. A questão é que o reality show nos afastou do sentido original da expressão Big Brother, que completou 70 anos no ano passado.
Os signos que hoje são despertados em nossa mente quando alguém diz Big Brother(edredon, Bial, Leifert, anjo, paredão, eliminação, subcelebridades...) não são os mesmos de quando a expressão surgiu, o que é bastante natural. O tempo passa e os sentidos vão mudando.
Hoje em dia a gente nem sempre se lembra que Big Brother – ou Grande Irmão – é uma expressão que ja existia antes da primeira edição do BBB.
A expressão surgiu no livro 1984, de George Orwell (pseudônimo do escritor e jornalista britânico Eric Arthur Blair), e se torna muito mais interessante quando entendida no seu contexto original. O livro foi escrito pouco depois do fim da II Guerra Mundial, já em um cenário de polarização entre Estados Unidos e União Soviética, Capitalismo e Socialismo...
O autor parte de algumas variáveis muito presentes nesse momento histórico e cria uma narrativa sobre um futuro não tão distante em que a combinação dessas variáveis geraria uma realidade catastrófica. É o que chamamos de distopia (o contrário de utopia).
Orwell inverteu os dígitos do ano em que escrevia, 1948, e estabeleceu que sua história se passaria em 1984, dai o título do livro.
Mas do que as datas, o interessante é olharmos para a variáveis que ele combinou para compor essa distopia: política e tecnologia. Naquele momento essas eram talvez as duas coisas que mais se transformavam globalmente.
Do lado da política as fronteiras entre países foram redesenhadas durante as duas guerras mundiais, as últimas monarquias ruíram, a nobreza deu seus últimos suspiros, a igreja perdeu importância, a sociedade de mercado se estabeleceu em boa parte do mundo o socialismo/comunismo se apresentou como alternativa.
No campo da tecnologia as guerras deixaram muitas heranças, como principalmente os avanços nos sistemas de telecomunicações e transportes, e o surgimento dos primeiros computadores (assistam ao filme O Jogo da Imitação para ver como eles eram).
O autor relacionou os lados negativos dessas duas variáveis para compor o enredo de 1984.
Na política ele vislumbrou que o mundo estaria caminhando para o surgimento de governos totalitários e imperialistas, de modo que uma única pessoa ou partido governaria grande parte do globo. No livro o mundo se divide em apenas dois ou três grandes Estados. Já a tecnologia da informática e telecomunicações estaria tão avançada que seria onipresente e permitiria o monitoramento de tudo o que acontecia em todos os lugares.
O que o autor fez foi imaginar essa tecnologia controlada pelos governos totalitários e imperialistas. Há quem diga que isso é bem próximo da realidade que temos hoje.
Em sua narrativa a principal das grandes regiões, a Oceânia, seria governada por um partido único, que detinha todos os meios de produção e era responsável por todas as atividades sob seu governo. Para manter sua dominância o partido impunha muitas regras sobre o que as pessoas podiam fazer e até sobre o que podiam falar e pensar. A suspeita do chamado pensamento-crime ou "crimepensamento" seria o suficiente para que uma pessoa fosse punida.
As pessoas eram suscitadas a respeitar essas regras para não desagradar ao mítico líder do partido e suposto governante geral, conhecido como... O Grande Irmão.
Mas como fiscalizar isso? Como garantir que as pessoas estariam de fato respeitando as regras, vivendo e pensando de acordo com as premissas do partido? A resposta é: tecnologia.
As pessoas eram obrigadas a ter em todos os cômodos de suas residências um equipamento chamado teletela (telescreen) e por meio dele era possível ver e ser visto. Ele poderia ser utilizado, por exemplo, como um rádio ou televisão, que transmitia o tempo todo a propaganda o partido, ou como um telefone, para a realização de espécies de vídeo-chamadas, em que ambos os interlocutores se vissem em suas teletelas.
Mas a teletela também seria controlada pelo partido e seria utilizada para monitorar as pessoas, sendo capaz de detectar qualquer indício quebra das regras. As pessoas nunca saberiam se estariam ou não sendo observadas em um determinado momento, mas sempre seria possível que estivessem.
Então todos agiam (e pensavam) como se estivessem sendo observados diretamente, o tempo todo, pelo Grande Irmão.
O partido utilizava em sua propaganda frases do tipo "O Grande Irmão zela por ti" ou "O grande irmão está te observando". A imagem abaixo é uma alegoria criada por Frederic Guimont, que representa como seriam essas propagandas. O rosto do Big Brother é inspirado na descrição contida no livro e é propositalmente parecido com vilões políticos da época, como Hitler, Stalin e Kitchener.
Com o tempo esse cartaz se tornou um meme.
Gosto de pensar nos memes como um recurso que nos ajuda a nos mantermos atualizados sobre conhecimentos que já deveríamos ter absorvido. A imagem do "Grande Irmão que observa você" funciona como um resumo de tudo o que o livro 1984 e a expressão Big Brother representa em seu contexto original. Ela nos lembra de um perigo que já conhecemos e devemos evitar.
Sempre que a ameaça de um governo totalitário em um mundo amplamente tecnológico se anuncia, essa imagem acaba aparecendo como um lembrete. É como se ela nos dissesse: não vamos permitir que cheguemos a esse ponto.
Veja alguns exemplos de como esse meme foi utilizado recentemente:
O fato do Zuckerberg estar ai no meio dos políticos abre a possibilidade para outra linha de discussões sobre o efeito Big Brother, mas esse não é o foco aqui.
Tudo bem que atualmente BBB nos remeta a edredons e eliminações. Mas jamais deveríamos esquecer de seu sentido original. O Big Brother pode estar mesmo nos observando, mas ele não está na Globo.
Todo meme é como um tapa-na-cara, do tipo "acorde!" ou "não se esqueça disso!". Esse é um bom momento para tomarmos esse tapa-na-cara.